• Fale com a gente

A cultura capacitista – O que é, onde vive, como se reproduz?

O ano de 2019 foi de mal-estar, não apenas pelas eleições do ano anterior, mas também pelo comportamento. Pelo pensar no outro, pelo não pensar. Havíamos acabado de iniciar os primeiros movimentos do engatinhar democrático quando topamos com a cabeça na quina do velho móvel ainda na sala. A democracia está no pronto-socorro.

Presenciamos movimentos, ações e reações de todos os tipos, pautas e mais pautas foram debatidas e enfrentadas. Ainda assim uma coisa não enfrentamos: a segregação da pessoa com deficiência.

O último mês do ano se inicia e nele se comemora o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência. Instituído em 1992, na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), o dia 3 de dezembro nos leva à reflexão que vai muito além de promover a conscientização da sociedade para a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, ela também nos lembra que a lista de exclusão é extensa, afinal, o capacitismo[1] não é apenas ignorância, ele define a discriminação para pessoas com deficiência, quando são consideradas incapazes de realizar algo.

O capacitismo é físico e social: físico quando impõe barreiras de acessibilidade, social quando a própria sociedade estigmatiza essas pessoas.

Inúmeros são os exemplos de capacitismo, porém, apenas alguns conseguiremos tratar nesse texto. Na esfera familiar, o capacitismo ocorre quando uma pessoa não PCD é questionada por sua família se está preparada para ter um relacionamento com uma pessoa com deficiência. Na esfera social, o capacitismo aparece quando nenhum movimento se preocupa em inserir pautas com pessoas com deficiência, não há espaço de fala. É como se essa parte da sociedade, estimada em 45,6 milhões de pessoas nos últimos censos do IBGE[2], fosse um caso à parte, um lugar onde o sol não tem vez, o baile segue e essa população nunca é convidada.

E se engana quem acha que no mercado de trabalho a coisa é diferente. A realidade é excludente e nos questiona – quantos deficientes você conhece ocupando cargos importantes em empresas? A sua empresa contrata pessoas com deficiência? Você conhece a lei de cotas?

Há quase 30 anos, a Lei nº 8.213/1991 estabeleceu que empresas devem oferecer, conforme o número de empregados, uma cota a ser ocupada por pessoas com deficiência e reabilitadas, prevendo um percentual mínimo de 2% para empresas que tem de 100 a 200 trabalhadores, até 5% para as que tem mais de 1mil empregados. Ainda, a Lei nº 13.146, de 2015, conhecida popularmente como LBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), também ampliou o direito das pessoas com deficiência de inserção no mercado de trabalho e garantiu a sua inclusão nas cotas do ensino superior.

Apesar dos avanços, o caminho é longo.

A lei prevê um critério matemático para estabelecer as vagas a serem preenchidas por pessoas com deficiência. A inclusão exige mais. A possibilidade de concorrer e se inserir em qualquer posto de trabalho, inclusive os mais altos, exige adaptação dos locais e instrumentos de trabalhos.

 A acessibilidade é insuficiente.

As pessoas com deficiência física, por exemplo, encontram obstáculos para sua mobilidade, o que lhes cria entraves para acessar o ensino regular e ocupar postos de trabalho.

Ainda, há a necessidade de desmistificar os preconceitos: de que pessoas com deficiência mental/intelectual são inaptas; de que os cegos ou surdos necessitam o tempo todo de ajuda para suas atividades; de que a deficiência deva ser tratada com assistencialismo e piedade, ou que ela está sempre associada a anomalias. Todas essas condutas são exemplos de condutas capacitistas, que impactam negativamente para contratação de pessoas com deficiência.

Na prática, a contratação de pessoas com deficiência significa para as empresas aumento de custo, que deverá adaptar seu posto de trabalho. Tal fator é impeditivo para a plena inserção social e laboral das pessoas com deficiência. A política pública se faz necessária.

E não é só! É preciso reconhecer que, ao longo de muitos anos, as pessoas com deficiência estiveram segregadas do sistema regular de ensino, o que cria problemas para inserção desse profissional.

Esses são alguns dos motivos pelos quais pessoas com deficiência ocupam apenas 1% dos postos de trabalho segundo dados de 2018 da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Entre os 46,6 milhões postos com carteira assinada, somente 486 mil são ocupados por trabalhadores com deficiência[3].

O levantamento ainda aponta que em 2018 houve crescimento nos empregos formais das pessoas com deficiência, totalizando 486,7 mil vínculos empregatícios, equivalente a 1% do contingente total. Em relação ao ano 2017, houve crescimento de +45,4 mil empregos, equivalente a +10,3%.

Os dados evidenciam que, embora a Lei de Cotas não tenha promovido inclusão ampla, foi por meio dessa ação afirmativa que asseguramos minimamente a ocupação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, isso porque o capacitismo é sistêmico e sem reação acarretará no empobrecimento dessa população, ainda mais em uma sociedade onde a exclusão das minorias é pilar de um sistema econômico pautado pelo lucro.

Apesar da necessidade de melhorias, o discurso de inclusão ainda sofre alguns ataques, como a discussão de extinção do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), pelo governo atual (primeiro semestre de 2019). O órgão foi criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento de uma política nacional para inclusão da pessoa com deficiência, dentre outras atividades.

No atual contexto, o dia 3 de dezembro não deve ser utilizado para promover a objetificação da pessoa com deficiência. Esse dia deve ser ocupado contra ideias assistencialistas rompendo com a figura de piedade e do portador de anomalias. Não nos silenciaremos!

A resistência da pessoa não é contra os entraves físicos, mas sim à incapacidade do outro em lidar com as diferenças. E o capacitismo? Esse se desconstrói com informação, empatia e luta contra os preconceitos e estigmatizações sociais.

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Fiona Kumari. Inciting legal fictions: Disability date with ontology and the ableist body of the law. Griffith Law Review, 10, 2001: 42—44.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência: resultados da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

Ministério da Economia. Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) 2018: Emprego da Pessoa com Deficiência. Outubro de 2019.

ONU. The Invisibility of Disability, 2016.

NOTAS

[1] Capacitismo é a concepção presente na sociedade que vê as pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir a próprias vidas, segundo Fiona Kumari Campbell.

[2] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censo Demográfico 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência: resultados da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao_deficiencia/default_caracteristicas_

religiao_deficiencia.shtm>. Acesso em: 01/11/2019.

[3] Ministério da Economia. Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) 2018: Emprego da Pessoa com Deficiência. Outubro de 2019. Disponível em: http://pdet.mte.gov.br/images/rais2018/nacionais/3-sumario.pdf. Acesso em: 01/11/2019.

Franciele Carvalho da Silva

Advogada da LBS Advogados
E-mail: franciele.silva@lbs.adv.br

Lais Lima Muylaert Carrano

Sócia da LBS Advogados
E-mail: lais.carrano@lbs.adv.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.