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“Pior a emenda do que o soneto”

A Lei nº 13.467/17, a denominada “Reforma Trabalhista”, entrou em vigência no dia 11 de novembro de 2017 e no dia 13 do mesmo mês a Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 808(2)  que, teoricamente, deveria corrigir ou alterar erros e distorções questionadas pelos senadores no ato da votação do PLC nº 38/17 em agosto do ano passado.

As alterações acordadas entre governo e senadores à época envolviam trabalho intermitente, jornada 12 por 36, danos extrapatrimoniais e trabalho de gestantes e lactantes em ambientes insalubres.

A MP entrou em vigor no dia 14 de novembro, foi prorrogada por mais 60 dias em 20 de fevereiro de 2018 e precisaria ser votada e aprovada pela Câmara dos Deputados e Senado, para ser sancionada como lei. Hoje, 23 de abril, contudo, perde sua eficácia por decurso de prazo.

Não houve nenhum movimento do Congresso Nacional para sua apreciação, com a indicação dos parlamentares para Comissão Mista que analisaria o texto. A Comissão nunca chegou a ter relator, em razão de não existir acordo entre senadores e deputados, com alegação destes que o acordo do governo foi feito apenas no Senado Federal.

De qualquer forma, como se poderá observar, a Medida Provisória enviada pelo governo piorava o que já era bastante ruim. Uma “emenda pior do que o soneto”.

Vejamos.

A Lei nº 13.467/17 prevê que o trabalhador intermitente receba apenas pelas horas trabalhadas, sem garantir o salário-mínimo ao final de cada mês. Além do mais, não possui regras claras que definem a abrangência desse tipo de contratação, nem sobre a situação previdenciária do trabalhador.

A MP silenciava quanto à abrangência, mas previa que, se o trabalhador intermitente não alcançasse a remuneração mensal equivalente ao salário-mínimo, poderia complementar esse valor para a incidência da contribuição previdenciária. Se optasse por não recolher, o empregado não seria segurado.

O dispositivo, como salta aos olhos, deixa o trabalhador totalmente desprotegido caso não receba um salário-mínimo no mês e não recolha a diferença, o que inviabiliza por completo a proteção social do trabalhador intermitente.

Mas não é só. O artigo aplicar-se-ia não somente ao trabalho intermitente, mas também ao em tempo parcial.

O artigo 452-G trazido pela MP, por sua vez, estabelecia espécie de “quarentena” para o empregador, que não poderia demitir um trabalhador com contrato por tempo indeterminado e recontratá-lo imediatamente como intermitente. Deveria esperar 18 meses para tanto.

A alteração parecia benéfica à primeira vista, já que evitaria demissões de grande número de trabalhadores, mas a MP não parou por aqui. A “quarentena” seria apenas até o ano de 2020, ou seja, a partir dele estaria tudo liberado.

Ainda em relação ao contrato intermitente, a MP alterava o prazo para que o empregado respondesse ao chamado do empregador. Em vez de um dia útil, previa 24 horas para a resposta. Ora, a contagem em horas é pior do que a contagem em dias e poderia confundir o trabalhador.

Outro ponto bastante polêmico e criticado sobre o trabalho intermitente se refere ao tempo à disposição do empregador não ser remunerado.

A MP não corrigia essa distorção, mas sim piorava a situação do trabalhador, já que previa que restaria descaracterizado o contrato de trabalho intermitente caso houvesse remuneração por tempo à disposição no período de inatividade. A disposição é perversa. Se o empregador quisesse remunerar o período de inatividade, o contrato intermitente seria descaracterizado. Em outros países, por exemplo, esse período de inatividade é remunerado em parte, como em Itália e Portugal.

Por fim, a MP considerava, acredite-se, a extinção do contrato de trabalho intermitente sempre com pagamento pela metade do aviso-prévio e da indenização sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e excluía, leia-se, excluía o direito ao seguro-desemprego.

Em relação à jornada 12 por 36, a “Reforma Trabalhista” admite turnos de 12 horas ininterruptas de trabalho intercaladas por 36 horas de descanso por acordo individual, em qualquer atividade, excluindo-se a necessidade da participação de sindicato em negociação coletiva sobre o tema. O trabalhador nesse regime poderá, inclusive, trabalhar em ambientes insalubres.

A MP acabava com a possibilidade do acordo individual para jornada 12 por 36, exceto para o setor de saúde. Ou seja, emendava, mas, novamente, em partes.

No tocante aos danos extrapatrimoniais, a Lei nº 13.467/2017 prevê que o valor da indenização varia em razão do salário do empregado. Ou seja, quem recebe mais, ganha maior indenização. Uma trabalhadora com alto salário, por exemplo, receberá maior indenização comparada a uma colega com salário menor, mesmo se forem assediadas da mesma forma, pelo mesmo colega de trabalho.

A Lei prevê ainda pagamento em dobro de indenização se o empregador cometer o mesmo assédio contra o mesmo empregado. O acordo do governo previa que essa reincidência do empregador seria aplicada mesmo que o assédio fosse cometido contra outro empregado.

A MP, porém, não procedeu aos devidos ajustes. Estabelecia como referência de cálculo das indenizações o valor máximo dos benefícios do INSS, podendo chegar a 50 vezes o valor desse teto, a depender da gravidade do dano. Ou seja, manteve a forma de tabelamento do dano extrapatrimonial, apenas modificando a base para o cálculo das indenizações.

Especificou sim os casos de reincidência, todavia, de forma bastante restritiva: somente ocorrerá reincidência contada de dois anos do trânsito em julgado da decisão, ou seja, beneficiava novamente o empregador que causa dano extrapatrimonial.

Sobre o trabalho das mulheres grávidas e lactantes em locais insalubres, um dos temas mais polêmicos: a Lei nº 13.467/2017 permite tal trabalho desde que não haja atestado médico determinado o afastamento. O trabalho é permitido sempre, se não houver atestado afastando a empregada.

A MP resolveu o problema? Seu texto previa que mulheres grávidas e lactantes só poderiam trabalhar em locais insalubres se apresentassem atestado assinado por médico de sua confiança. O trabalho é proibido, a não ser que exista atestado permitindo o trabalho da empredada. A diferença, assim, é muito tênue: antes, o trabalho era permitido, desde que não houvesse atestado médico determinado o afastamento. Com a MP, a mulher poderia trabalhar em local insalubre se apresentasse, por livre e espontânea vontade, atestado médico. Parece benéfico, não?

O texto, no entanto, assegurava o afastamento em caso de insalubridade com a perda do adicional, o que não estava previsto na Lei. Ao final, “a emenda é muito pior do que o soneto”, porque força a mulher, especialmente de baixa renda, a apresentar um atestado médico para manter o seu trabalho naquele local e receber a devida remuneração.

Como se vê, a Medida Provisória nº 808 era bastante prejudicial e não trazia nenhum benefício ao trabalhador. Ao contrário, contribuiu tão somente para trazer mais insegurança e polêmica. Como ficarão os contratos firmados de acordo com seu texto?

Convém lembrar, ainda, que a MP “caduca” levando consigo 967 emendas, muitas delas frontalmente contrárias aos direitos da classe trabalhadora.

E a medida pode ser reeditada? Não. Se respeitada a Constituição federal (artigo 62, § 10), é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.

Ao final, talvez devêssemos pensar como importante poeta português do século XVIII Manuel Maria Barbosa Du Bocage. A frase que intitula este texto tem origem em história envolvendo um aspirante a poeta, que teria pedido a opinião de Bocage sobre soneto que tinha escrito. Bocage não fez uma única emenda no soneto e teria dito: Muitas vezes é melhor começar tudo de novo do que tentar emendar uma obra nascida torta(3).. É exatamente o caso da “Reforma Trabalhista”!

Referências

[1] O autor é advogado da área consultivo-sindical de LBS Advogados, unidade de Brasília.

[2] Para conhecer o texto na íntegra da MP nº 808, comparado ao da Lei nº 13.467/2017, e alguns comentários, acesse: Quadro Comparativo MP nº 808 e Lei nº 13.467.

[3] A Lei nº 13.467/2017, decorrente do Projeto de Lei nº 6.787/2016, apresentado à Câmara dos Deputados por Mensagem Presidencial enviada no último dia das atividades legislativas de dezembro de 2016, alterava inicialmente poucos artigos da CLT e da Lei nº 6.019/1974. Em 9 de fevereiro de 2017, foi constituída Comissão Especial na Câmara destinada a proferir parecer sobre o projeto naquela Casa. No dia 12 de abril, o relator, Deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), apresentou relatório com substitutivo, modificando substancialmente a proposta original, com alteração em mais de 100 artigos da CLT e a inserção de novos artigos, além de revogar outros dispositivos. Houve também alterações na lei do FGTS e nas leis previdenciárias.

O Substitutivo com redação final foi aprovado pela Câmara (PL nº 6.787-B) em 27 de abril e, no Senado Federal, tramitou também muito rapidamente, sendo aprovado no dia 11 de julho. Naquela Casa, por exemplo, para reduzir o tempo de tramitação, houve sessão conjunta geral de debates no Plenário e audiências conjuntas das Comissões de Assuntos Econômicos (CAE) e de Assuntos Sociais (CAS), a despeito dos pedidos de inúmeras audiências, que garantiriam maiores debates e participação ampla de todos os atores atingidos pelas mudanças propostas.

Além disso, deixou-se de realizar estimativa do impacto orçamentário e financeiro do então Projeto de Lei, nos termos dos artigos 113 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

A Lei nº 13.467/2017, assim, padece de falta de legitimidade quanto ao processo legislativo. As entidades sindicais foram alijadas do debate. A complexidade de todos os dispositivos modificados exigia, indubitavelmente, maior discussão e negociação no Poder Legislativo. A realização de consultas a toda a sociedade em matérias relacionadas ao trabalho é prevista, inclusive, na Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 27 de setembro de 1994 e promulgada pelo Decreto nº 2.518, de 12 de março de 1998, e não foi respeitada.

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Antonio Fernando M. Lopes

Sócio da LBS Advogados
E-mail: antonio.megale@lbs.adv.br

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