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Tudo passa, os direitos ficam – A pandemia do Covid-19 e a alteração das circunstâncias 

A pandemia do Covid-19 que assola o planeta, pela rapidez de seu contágio e a letalidade de seu agente, vem atordoando toda a população mundial e, em especial, seus líderes políticos, ao confrontá-los com a realidade que acompanha o ser humano desde que se entende como tal: não somos senhores do nosso destino, a existência está em constante transformação.  

Essa realidade, de tão presente em nossas vidas, foi incorporada em todas as esferas do cotidiano. A cultura religiosa, pelo budismo, a conceitua como “impermanência”. A cultura jurídica, por sua vez, deu-lhe concretude na expressão latina “rebus sic stantibus” — em tradução livre, “estando assim as coisas” —, cláusula intrínseca a todo contrato de prestação continuada ou diferida, de execução futura; também a teorizou como “imprevisão”.   

Pela teoria da imprevisão, reconhece-se que a base do negócio jurídico é assentada sobre as circunstâncias presentes no momento de sua realização. Porque conectado com a vida, espera-se do Direito, por princípio de justiça, que uma alteração extraordinária, resultante de fatos supervenientes e imprevisíveis da realidade, traga consequências para a relação jurídica específica, impondo-se, assim, a sua modificação ou resolução.  

O Código Civil brasileiro de 2002, como resultante do seu moderno olhar sobre as relações cíveis, entremeou a imprevisão com importantes institutos jurídicos, como o do abuso do direito (art. 187), o da função social do contrato (art. 421) e, enfim, outras várias disposições que regulam a alteração resultante de fatos supervenientes (arts. 317 e 478 a 480).[1] 

No cenário de inegável instabilidade vivenciado, agora, pela pandemia, é de se esperar impactos significativos nas relações contratuais. Quer no âmbito privado, quer nas relações de consumo ou, mesmo, nas relações de trabalho, a possibilidade da infecção pelo coronavírus tem alterado, de forma contundente, as circunstâncias em que se encontram assentados negócios jurídicos dos mais corriqueiros aos mais complexos.  

Sabe-se que, enquanto princípio geral do direito, os contratos devem ser cumpridos nos exatos termos em que foram celebrados, pressupondo seu fiel cumprimento até atingir a finalidade do contratado pelas partes.  

No contrato de consumo, por exemplo, a compra de uma passagem aérea pressupõe que a companhia levará o consumidor até o seu destino. Em igual sentido, quando se celebra o contrato de trabalho, espera-se que empregador e empregado cumpram com as obrigações contratuais, dentre elas aquelas que cabem ao empregador, de fornecimento de um ambiente de trabalho com as condições próprias ao desenvolvimento seguro e saudável da atividade laboral; obrigando-se o empregado, em contrapartida, a utilizar os equipamentos de proteção individual, quando necessários (p.e.: Cf, art. 7º, XXII[2], e CLT, Capítulo V, “Da Segurança e da Medicina do Trabalho” e art. 158, parágrafo único, “b”). 

Com a alteração das circunstâncias inicialmente contratadas, como ocorre atualmente no conturbado cenário do coronavírus, em que todas as relações se tornaram imprevisíveis, precisamos nos socorrer ao Direito para buscar o reequilíbrio das relações contratuais. Nesse sentido, diz o art. 317 do CCB que, “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o  juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”. 

Assim é que, em situações como esta, em que o desequilíbrio do negócio jurídico ocasiona uma onerosidade excessiva na prestação contratual, com extrema vantagem para uma das partes, o Código Civil brasileiro, por seu art. 478, prevê que o prejudicado acione o Judiciário, na busca da rescisão do contrato.  A fim de evitar a rescisão contratual, o art. 479 do CCB, por seu turno, autoriza ao réu a oferta da modificação equitativa das condições do contrato, com vistas ao seu realinhamento.  

Estas hipóteses podem ser observadas no âmbito das relações consumeristas, por exemplo, nas medidas extrajudiciais adotadas pelas empresas aéreas, que passaram a permitir a alteração de voos afetados pela pandemia, sem cobrança de multa.  Neste cenário, as partes evitam a judicialização do conflito mediante a alteração equitativa da base do negócio, readequando-o à atual realidade.  

Outro exemplo é o recente posicionamento da Caixa Econômica Federal, que, diante dos prejuízos financeiros advindos pela crise do coronavírus, suspenderá duas parcelas do financiamento habitacional e de empréstimos a empresas e pessoas físicas, entre outras medidas que visam garantir equidade diante da alteração das circunstâncias contratuais.  

No que diz respeito às relações de trabalho, um cenário de pandemia poderá alterar um ambiente rotineiramente salubre em insalubre (CLT, art. 189[3]), como no caso das atividades bancária e de comércio, em que o contato interpessoal passa a ser desaconselhável.  Nesse caso, todo um conjunto normativo dedicado às atividades insalubres passaria a ser aplicável, inclusive com a necessidade de pagamento do devido adicional (CLT, art. 192[4]), caso não eliminada ou neutralizada a insalubridade na forma do art. 191 da CLT[5]

Assim, em tempos de crise por pandemia viral como a que estamos vivenciando, em resposta a pedido de aconselhamento sobre como enfrentar as vicissitudes surgidas no dia a dia, um monge budista profetizará: “Tudo passa”; um de nossos advogados, por sua vez, alertará: “Os direitos ficam”. 

Brasília e Campinas, 22 de março de 2020. 

REFERÊNCIAS

[1] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.  “Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. “Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”. “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. “Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”. “Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”. 

 

[2] “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: 

(…) 

XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;” 

[3] Art. 189 – Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. 

[4] “Art. 192 – O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo”.    

[5] “Art. 191 – A eliminação ou a neutralização da insalubridade ocorrerá: 

I – com a adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância; 

II – com a utilização de equipamentos de proteção individual ao trabalhador, que diminuam a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância”.  

 

 

Ricardo Quintas Carneiro

Sócio da LBS Advogados
E-mail: ricardo.carneiro@lbs.adv.br

Matheus Cunha Girelli

Advogado da LBS Advogados
E-mail: matheus.girelli@lbs.adv.br

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