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União estável e a MP nº 871/19

Uma das principais relações humanas é a relação familiar. A família é um grupo social formado fundamentalmente em elos de afetividade e resulta em uma convivência sem interesses materiais. Nem sempre, contudo, as famílias se constituíram na forma e no conteúdo hoje conhecidos. 

Neste texto, nosso objeto de estudo é relação familiar atualmente entendida como união estável, mais especificamente as mudanças que a recente Medida Provisória n° 871/19 trouxe para os cidadãos que mantém uma união estável. Para tal análise, é importante breve contextualização histórica.

No Brasil, uma colônia portuguesa, a primeira Constituição de 1824 estabeleceu a religião católica apostólica romana como a religião oficial do Império Brasileiro. Após a independência, as Ordenações Filipinas permaneceram em vigor, baseando-se no direito canônico, e somente aceitavam como legítimo o casamento celebrado com todas as formalidades religiosas. Somente após a proclamação da República, em 1890, foi regulamentado o casamento civil.  

Assim, passaram a ser considerados válidos apenas os casamentos celebrados de acordo com a referida regulamentação, tendo a Constituição Republicana de 1891 ratificado o disposto anterior.

O Código Civil de 1916 continuou a estabelecer o casamento civil como única forma de constituição da família legítima. Apesar de o diploma civil não ter proibido a união de fato, privilegiou o instituto do casamento em diversas passagens, como no caso de seu artigo 248, inciso IV, que possibilitava à mulher casada reivindicar os bens comuns doados ou transferidos à concubina.  

Entretanto, de forma espaçada e conflitante, a legislação e a jurisprudência começaram a reconhecer direitos aos companheiros. Neste ponto, é importante mencionar a Lei nº 4.297/63, que estabeleceu a possibilidade, havendo o falecimento de servidor civil, militar ou autárquico, de concessão de pensão à companheira, desde que com o segurado tenha convivido maritalmente por prazo não inferior a cinco anos e até a data de seu óbito.  

Outro importante marco legal foi o advento da Lei n° 6.515/77, que instituiu o divórcio no ordenamento jurídico brasileiro, acabando com o caráter de indissolubilidade do casamento civil, e abrindo espaço para maior reconhecimento da chamada “família de fato”.  

Ainda já sob o manto da Constituição de 1988, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.723, dispõe: 

Art. 1723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 

No ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal concluiu julgamento que discutia a equiparação entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, inclusive em uniões homoafetivas. A conclusão do Tribunal foi de que não existe elemento de discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, estendendo esses efeitos independentemente de orientação sexual. 

Para o exercício dos direitos gradativamente reconhecidos aos companheiros, têm-se diversas formas de se comprovar a existência da união estável, seja por prova documental, como, por exemplo, comprovação de domicílio em comum, certidão de nascimento de filhos havidos em comum, escritura de união estável, ou ainda prova testemunhal. 

Neste sentido, a jurisprudência pátria consolidou ao longo dos últimos anos que a comprovação da união estável pode ser feita unicamente por prova testemunhal, não se exigindo apresentação de prova material, sendo esta apenas um reforço ao conjunto probatório. 

A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, esclarecida quanto à dificuldade encontrada pelos conviventes em demonstrar a existência da união estável, principalmente quando não há filhos em comum em conjunto com a ausência de previsão legal, editou a Súmula n° 63, vejamos; 

Enunciado nº 63. A comprovação de união estável para efeito de concessão de pensão por morte prescinde de início de prova material. 

Desse modo, havendo prova testemunhal robusta e convincente que ateste a existência de união estável até a data do óbito, o benefício previdenciário do Regime Geral da Previdência Social será devido. 

Contudo, na contramão de toda a gradativa evolução exposta acima, a Presidência da República editou no dia 18 de janeiro a Medida Provisória n° 871/19, que, de forma genérica e pouco lógica, instituiu a criação de um programa para análise e revisão de benefícios com indícios de irregularidades.  

Entre a instituição de competências aos médicos peritos e demais ministérios do governo para a efetivação da suposta força-tarefa para identificar irregularidades, o texto prevê requisito frontalmente contrário ao entendimento jurisprudencial maciço acerca da forma de comprovação da união estável para fins de dependência para percepção de benefícios previdenciários. 

A referida Medida Provisória acrescentou novo parágrafo ao artigo 16 inadmitindo prova exclusivamente testemunhal para a comprovação da qualidade de dependente em razão da união estável. 

O artigo 16 da Lei n° 8.213/91 dispõe, em seu inciso 1º, que são dependentes do segurado “o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;” 

O novo 5º dispõe: “A prova de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior e ou caso fortuito, conforme disposto no Regulamento.” 

De forma a prestigiar a importância social da entidade familiar, da equidade e da dignidade da pessoa humana, verifica-se um largo esforço para a evolução legal e jurisprudencial no reconhecimento dos direitos às pessoas em união estável. Tal postura não foi adotada pelo novo Governo Federal.

Claudia Caroline Nunes da Costa 

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