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Trabalho intermitente: a dignidade no trabalho é compatível com a modernidade?

No dia 3 de dezembro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal prosseguiu no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 5.826, 5.829 e 6.154, que tratam da inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei nº 13.467/2017, “Reforma Trabalhista”, pelos quais foi criada e é regulamentada a modalidade do contrato de trabalho intermitente.

O trabalho intermitente introduz novo modelo de trabalho, o qual, segundo o conceito emprestado da Socióloga Ludmila Abílio para o trabalho em plataformas digitais, reduz o trabalhador a um trabalhador “just-in-time”. Ou seja: reduz o “trabalhador a um fator de produção que deve ser utilizado na exata medida das demandas do capital; além disso, trata-se de uma vitória na busca permanente pela eliminação dos poros do trabalho. Ainda pior, o uso na exata medida já não requer predefinições contratuais: o trabalhador está inteiramente disponível ao trabalho”.

Iniciado o julgamento no dia 02/12/2020, depois das sustentações orais das partes, dos amigos da corte e da procuradoria da República, o Relator, Ministro Edson Fachin, por seu voto, ressaltou que o contrato intermitente, na forma da Lei nº 13.467/2017, é insuficiente para proteger os direitos fundamentais sociais trabalhistas, pois não fixa horas mínimas de trabalho nem rendimentos mínimos, ainda que estimados.  Daí porque, “ante a ausência de fixação de horas mínimas de trabalho e de rendimentos mínimos, ainda que estimados, é preciso reconhecer que a figura do contrato intermitente, tal como disciplinado pela legislação, não protege suficientemente os direitos fundamentais sociais trabalhistas”, concluiu pela inconstitucionalidade dos arts. 443, “caput”, parte final, e § 3º; 452-A, § 1º ao § 9º, e artigo 611-A, VIII, parte final, todos da CLT, com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017.

Admitida como “amicus curiae”, em sustentação oral, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ressaltou a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual o salário mínimo (art. 7º, IV, da Cf), como patamar mínimo existencial do trabalhador, não pode ser flexibilizado em razão da jornada de trabalho (art. 7º, XIII, Cf), desvirtuando os critérios estabelecidos pelo constituinte originário (RE nº 565.621-CE).

Na continuidade do julgamento, o Ministro Nunes Marques divergiu do entendimento do relator, para declarar a constitucionalidade da alteração legislativa, no que foi acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes.

Segundo o Ministro Alexandre de Moraes, para se aferir a constitucionalidade dos novos dispositivos legais em questão, fazia-se necessário responder a três questões:

1ª) O legislador ordinário pode ou não criar novas formas de contrato de emprego?

2º) Em sendo possível a inovação, pode o legislador romper com as regras para o trabalho formatadas a partir da Revolução Industrial, as quais classificou como “modelo tradicionalista”?

3º) Havendo então a ruptura do “modelo tradicionalista”, como deveria o legislador se comportar diante dos direitos sociais consagrados constitucionalmente?

Ao responder positivamente às três questões postas, Alexandre de Moraes declarou a constitucionalidade da modalidade da contratação intermitente, ressaltando o pretenso respeito do legislador aos direitos sociais trabalhistas.

A sintonia fina entre os votos divergentes deu-se sob a frequência da modernidade.  A legislação deve adaptar-se aos novos modelos de organização — melhor: exploração! — do trabalho.

A questão que fica até agora é, sob o pálio da sua Constituição federal — que impõe, segundo o voto do Ministro Fachin, a Justiça Social como valor e fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, IV, da CRFB) e diretriz segura de que a valorização do trabalho humano objetiva assegurar a todos e todas uma existência digna (art. 170 da CRFB), bem como de que o primado do trabalho é a base da ordem social brasileira, tendo por objetivos o bem-estar e a justiça social (art. 193 da CRFB) —, o trabalhador brasileiro deve temer a modernidade?

O que há de moderno, afinal, em um modelo de contratação que rompe com as certezas basilares para uma vida minimamente digna e previsível, justo aquelas relacionadas com uma jornada de trabalho fixa, mediante uma remuneração contratualmente estabelecida?  Que descumpre, afinal, as promessas inscritas no art. 170 Cf, ao permitir uma ordem econômica fundada, sim, pode-se dizer, na desvalorização do trabalho humano, sem que a busca do pleno emprego se realize na forma pretendida. Ao menos é essa a realidade que os exemplos internacionais têm nos trazido como resultado à equação proposta pelo Ministro Alexandre de Moraes, na aceitação do contrato de trabalho “zero hora”.

Não pode ser esse o modelo de sociedade prometido pelo Constituição federal e até agora proposto pelo STF, na qual a pessoa trabalhadora deve temer por seu futuro, ao ser vista como mera mercadoria, instrumento, tendo a sua subjetividade objetificada em uma sociedade distópica, em que a modernidade representa um retrocesso histórico ao mundo do trabalho de antes da Revolução Industrial.

Na sequência dos votos divergentes, a Ministra Rosa Weber pediu vista regimental, o que suspendeu o julgamento.

Sigamos atentos ao julgamento! O futuro do trabalho digno está em causa.

Brasília, 3 de dezembro de 2020.

Ricardo Quintas Carneiro

Sócio da LBS Advogados
E-mail: ricardo.carneiro@lbs.adv.br

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