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Tratamento desigual aos servidores públicos expostos à Covid-19 Reflexões sobre a LC nº 191/22

No dia 8 de março de 2022, foi publicada a Lei Complementar nº 191/2022[1], modificando a previsão de suspensão da contagem do tempo de trabalho para fins de adicionais estipulada no art. 8º da Lei Complementar nº 173/2020[2].

 

A LC nº 191/22 assegura exclusivamente às servidoras e aos servidores das áreas de saúde e segurança pública que o tempo de serviço durante a calamidade pública ocasionada pela pandemia, seja contado para fins de anuênio, triênio, quinquênio, sexta parte e licença-prêmio, suspendendo-se tão somente o pagamento nesse período.

 

A Lei, assim, permite a contagem de tempo, vedada no art. 8º, inciso IX, da LC nº 173/20:

 

“Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:

(…)

IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.”

 

Apesar da disposição ser benéfica aos servidores das áreas de saúde e segurança pública, ela exclui as demais categorias de servidores, já que estabelece formas distintas de contagem de tempo, implementando tratamento não isonômico e contrariando os princípios básicos que regem a administração pública.

 

 

Lei Complementar nº 173/20

 

 

Desde a publicação da LC nº 173/20, diversas entidades de servidores vêm se mobilizando, promovendo debates, manifestações, elaborando notas de repúdio e análises em busca de alternativas para minimizar os impactos negativos dessa norma para a categoria.

 

No âmbito legislativo, por exemplo, foram apresentados projetos de lei buscando modificações na LC nº 173/20, dentre os quais merece destaque o Projeto de Lei Complementar nº 4, de 2022[3], que busca assegurar a todos os servidores a contagem do tempo de serviço entre 7 de maio de 2020 e 31 de dezembro de 2021, suspendendo-se tão somente os efeitos financeiros nesse período. Este projeto está em trâmite no Senado Federal.

 

Além da luta política pela revogação ou alteração da LC nº 173/20, foram ajuizadas dezenas de ações judiciais que buscam delimitar o alcance dessa norma, especialmente com relação aos efeitos sobre a contagem de tempo de serviço dos servidores.

 

Nesse âmbito, a probabilidade de se restringir os impactos do art. 8º da LC sobre os servidores públicos foi drasticamente reduzida pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade que discutiam as inconstitucionalidades desse dispositivo.[4]

 

 

Lei Complementar nº 191/22

 

 

A partir da edição da LC nº 191, contudo, temos uma situação fática e jurídica distinta daquela em que a ADI nº 6.442 foi julgada, o que pode viabilizar novas medidas judiciais.

 

A LC nº 191/22 acabou por excepcionar o disposto no art. 8º da LC nº 173/20, determinando que, para os servidores das áreas de saúde e segurança, a contagem de tempo não seria suspensa, mas somente o pagamento dos eventuais adicionais obtidos nesse período.

 

Analisando o Projeto de Lei Complementar nº 150/2020[5], que deu origem à LC nº 191/22, podemos observar que as justificativas do autor do projeto restringiam-se ao argumento de que esses servidores atuariam na linha de frente do combate à pandemia.[6]

 

Contudo, em que pesem os argumentos do autor do projeto, ao observarmos a realidade dos servidores públicos, todas as demais carreiras continuam a trabalhar durante a pandemia, alguns deles com exposição ao risco de contaminação muito maior do que os servidores da área de segurança pública, por exemplo.

 

Destacamos os servidores que atuam nas áreas de limpeza pública, os trabalhadores dos cemitérios e velórios públicos e os trabalhadores da assistência social. Dentro das universidades, os docentes universitários das áreas de saúde que desempenham atividades de assistência nos hospitais e aqueles docentes com pesquisas científicas em andamento, especialmente na área de saúde.

 

Todos esses servidores também estiveram efetivamente expostos aos riscos decorrentes da exposição ao vírus da Covid-19, muitas vezes em grau muito maior do que os servidores da área de segurança pública.

 

 

Novos elementos para atuação política e jurídica

 

 

Ao analisarmos as disposições da LC nº 191/22 a partir da Constituição federal e das normas que regem o serviço público, especialmente sob o prisma dos princípios da administração pública e do regime jurídico único, podemos observar que a exclusão dos servidores das demais áreas da flexibilização dos efeitos do art. 8º da LC nº 173 é ilegal.

 

Com efeito, com a aprovação da LC nº 191/22, restou evidenciado que as finalidades de ajuste fiscal buscadas pela LC nº 173/20 poderiam ser plenamente atendidas por meio da suspensão do pagamento dos adicionais e das verbas decorrentes do transcurso de tempo de serviço durante o período previsto na LC nº 173, sem a necessidade da criação de ficções jurídicas como a suspensão da contagem de tempo.

 

A exclusão das demais categorias de servidores também afronta diretamente os princípios da isonomia de tratamento dos servidores públicos, que está implícito nos arts. 37 e 39 da Constituição federal e de forma explícita no art. 40, § 4º, da Lei nº 8.112/90.

 

A isonomia visa assegurar que o tratamento da administração pública para todos os servidores seja diferente tão somente na medida de suas desigualdades, vedando medidas e ações que possam prejudicar determinadas categorias ou indivíduos, assegurando, dessa forma, a impessoalidade e a moralidade dos atos da administração pública.

 

Diante da flexibilização dos efeitos do art. 8º da LC nº 173/20 para os servidores da área de saúde e segurança, diante da inexistência de justificativas técnicas ou jurídicas para a exclusão dos demais servidores dessa flexibilização e em virtude dos princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade, entendemos que LC nº 191/22 estabelece nova situação fática e jurídica, evidenciando que as finalidades de ajuste fiscal pretendidas seriam plenamente atendidas por meio, tão somente, da suspensão do pagamento dos adicionais e verbas decorrentes do transcurso de tempo de serviço no período previsto na LC nº 173/20.

 

Assim, apesar de a LC nº 191/22 fragmentar a luta dos servidores públicos pela revogação ou adequação da LC nº 173/20, ela também traz novos elementos para as disputas políticas e judiciais, que demonstram a imprescindibilidade da flexibilização dos efeitos do art. 8º da LC nº 173/20 para todos os servidores públicos, com a efetiva contagem do período de trabalho entre 7 de maio de 2020 e 31 de dezembro de 2021 para todos os fins.

 

 

Campinas, 13 de abril de 2022.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

[1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp191.htm

 

[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm

 

[3] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151678

 

[4] Vejamos abaixo alguns trechos da ementa do Julgamento da ADI nº 6.442:

 

“6. A norma do art. 8º da LC 173/2020 estabeleceu diversas proibições temporárias direcionadas a todos os entes públicos, em sua maioria ligadas diretamente ao aumento de despesas com pessoal. Nesse sentido, a norma impugnada traz medidas de contenção de gastos com funcionalismo, destinadas a impedir novos dispêndios, congelando-se o crescimento vegetativo dos existentes, permitindo, assim, o direcionamento de esforços para políticas públicas de enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia da COVID-19. 7. Os arts. 7º e 8º da LC 173/2020 pretendem, a um só tempo, evitar que a irresponsabilidade fiscal do ente federativo, por incompetência ou populismo, seja sustentada e compensada pela União, em detrimento dos demais entes federativos. A previsão de contenção de gastos com o aumento de despesas obrigatórias com pessoal, principalmente no cenário de enfrentamento de uma pandemia, é absolutamente consentânea com as normas da Constituição Federal e com o fortalecimento do federalismo fiscal responsável. 8. As providências estabelecidas nos arts. 7º e 8º da LC 173/2020 versam sobre normas de direito financeiro, cujo objetivo é permitir que os entes federados empreguem esforços orçamentários para o enfrentamento da pandemia e impedir o aumento de despesas ao fim do mandato do gestor público, pelo que se mostra compatível com o art. 169 da Constituição Federal.

 

Não há redução do valor da remuneração dos servidores públicos, uma vez que apenas proibiu-se, temporariamente, o aumento de despesas com pessoal para possibilitar que os entes federados enfrentem as crises decorrentes da pandemia de COVID-19, buscando sempre a manutenção do equilíbrio fiscal.” (ADI 6442 / DF – DISTRITO FEDERAL, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Julgamento: 15/03/2021, Publicação: 23/03/2021, Órgão julgador: Tribunal Pleno).

 

[5] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2254287

 

[6] Vejamos:

 

JUSTIFICATIVA

 

A edição da Lei Complementar n° 173, de 27 de maio de 2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), ao disciplinar em seu inc. IX, do art. 8º, a restrição de cômputo de períodos aquisitivos de aquênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio, dentre outros mecanismos equivalentes, traçou dispositivo extremamente oneroso aos servidores e em patente dissonância com a exigência da realidade fática e jurídica brasileiras.

 

Os direitos mencionados decorrem da consecução do exercício diário de atividades por servidores públicos, os quais, durante a decretação de estado de calamidade, em decorrência da necessidade de enfrentamento do Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), mantiveram-se no exercício de suas funções, no auxílio direto aos enfermos, inclusive com forte exposição à doença, com forte risco a sua incolumidade física e de seus familiares.

 

Ocorre que a Pandemia supra produzirá reflexos substanciais na economia, o que fomentou a edição da Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, sobretudo para manter a saúde fiscal-financeira dos Entes Federados.

 

Nessa inteligência, seria plausível, no atual contexto econômico, a proibição do pagamento de novos direitos mencionados no inc. IX, do art. 8º, adquiridos no período de decretação da Pandemia até 31 de dezembro de 2020, o que geraria significativa economia estatual. Todavia, não seria adequado que não houvesse o cômputo do período aquisitivo desses direitos, mormente para os profissionais da Saúde e da Segurança Pública, seja porque estes servidores mantiveram-se e mantêm-se no exercício de suas funções, seja porque a vedação da contagem afeta seus planos de carreira, influenciando, inclusive, no tempo de pedido de aposentaria.

 

Sendo a teleologia da norma gerar forte economia para os entes estatais que disciplina, proibir tão somente o pagamento nesse período para essas categorias que combatem de frente a pandemia, atende à finalidade da Lei Complementar, no período em comento, sem desnaturar a carreira e os direitos daqueles que ainda, com forte abnegação, desenvolvem suas atividades em prol da sociedade.

 

Sendo assim, na busca da realização da Justiça e em face da extrema relevância da medida aqui proposta, conta-se com o pleno apoio dos Senhores Parlamentares para a rápida aprovação deste Projeto de Lei.

 

Sala das Sessões, em 2 de junho de 2020, na 56ª legislatura.

 

GUILHERME DERRITE

 

DEPUTADO FEDERAL

 

Rivadavio Anadão Guassú

Sócia da LBS Advogados
E-mail: rivadavio.guassu@lbs.adv.br

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